O protagonismo feminino na
Segunda Guerra Mundial, ignorado pelos periódicos da época e pelos livros de
história, é finalmente retratado em A
guerra não tem rosto de mulher. Escrito pela jornalista ucraniana Svetlana
Aleksiévitch, o livro traz as experiências, a dor e o sofrimento de
franco-atiradoras, voluntárias, enfermeiras, soldadas e garotas que pilotavam
tanque durante a disputa bélica.
Através da humanização
dessas mulheres, característica fundamental nas grandes reportagens, os relatos
ganham vida. A narração é sensível e conta os bastidores de uma das suas
principais batalhas: a aceitação da família e do exército de que eram capazes
de combater os alemães e morrer pela nação soviética. Elas sabiam que
precisariam renunciar algo, pois perseguiam um ideal. Mas estavam decididas e
não mudariam de ideia. Queriam lutar.
Porém, antes de partirem,
precisaram medir as consequências dessa decisão e abrir mão de alguns desejos.
Jovens de 16 e 17 anos tiveram que adiar o primeiro beijo, mulheres tiveram que
deixar os filhos com terceiros e até mesmo abortá-los, pois não poderiam
criá-los — tudo em nome da vontade de terminar com a guerra e com as mortes que
ela proporcionava.
Nem mesmo pequenas regalias
que podemos usufruir como ter cabelos e tranças longas, pintar as unhas, usar
trajes confortáveis dos nossos tamanhos era possível para as guerreiras da
finada União Soviética. Não podiam utilizar roupas íntimas femininas, apenas cuecas.
Afinal, quem lutava eram os homens, então as vestimentas eram feitas para esses
combatentes. Tudo era feito para eles. “O feminino dessas palavras [atirador de
fuzil e soldado de infantaria] nasceu lá, na Guerra”, fala Svetlana em certa
passagem do livro. Antes, eram termos exclusivamente masculinos.
Ao longo da obra,
descobrimos que o sofrimento de estar em uma guerra não acabou em 1945 para as
mulheres. Ele se estendeu em forma de desprezo e preconceito por terem lutado.
De acordo com alguns homens entrevistados por Svetlana, a experiência também
resultou na perda da feminilidade das combatentes, pois não eram mais vistas
como “belas damas” — sendo que elas estavam defendendo o Exército Vermelho,
salvando a pátria. Já as outras mulheres,
achavam que as guerreiras soviéticas iam para o combate a fim de encontrar
noivo. A sociedade em geral se sentia incomodada quando elas usavam suas condecorações e
medalhas conquistadas com sangue, suor e lágrimas. Apesar da falta de
valorização, essas mulheres ainda guardam retratos fotográficos, fardas e armas
daquele episódio que ninguém acredita que participaram e sobreviveram.
Um fator surpreendente do livro é a
relação íntima e pouco usual entre repórter e fonte. Svetlana se emociona e
conversa com as mulheres como se fossem amigas de longa data e acaba
participando do que chama de “história dos sentimentos”. No entanto, essa foi a
forma que encontrou para construir a teia de relatos.
A autora revela também as
técnicas que utilizou para fazer as abordagens com as soviéticas. Segundo ela,
no começo, havia pouco contatos, mas ao ir entrevistando uma por uma, mais
mulheres interessadas em serem ouvidas apareciam. Foi preciso então estabelecer
critérios de seleção e busca. Assim, delimitou que iria encontrar apenas moças
que tinham diferentes profissões militares.
Essas histórias são
contadas com leveza e possibilitam uma leitura fluida, apesar de abordarem os
horrores e as desgraças do front. É
possível perceber a sensibilidade da escritora em contar as “versões femininas” da
guerra, como ela diz. Além disso, nota-se o cuidado de Svetlana em tornar os
relatos humanos — justamente o oposto do que ouvimos dos homens, que se
intitulam vitoriosos e se gabam pelos feitos heroicos.
A voz dessas mulheres,
silenciadas por muitos anos, ecoa na mente de quem lê o livro. Elas são de
lugares, classes sociais e profissões diferentes, mas com sentimentos em comum:
medo, paixão, vulnerabilidade e insegurança. Nenhum deles as diminui, pelo
contrário — isso torna-lhes humanas, profundas e reais.
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